Como diz a música to Toquinho, “era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada...”.
Assim era a casa que eu morava. Próximo ao mar, com uma vista maravilhosa, cercada por todos os lados por pedras que há séculos eram banhadas pelas ondas do mar que insistentemente tentavam em vão ultrapassar os limites naturais impostos pelo Criador.
A sensação de não ter teto nem ter nada vinha do fato dela ser feita toda de vidro. Uma construção impressionante, que por simplesmente existir deixava o mais incrédulo dos homens começando a crer que aquilo não poderia ser obra feita por mãos humanas.
Ao passar pela porta da casa algo mágico acontecia, mas creio ser difícil explicar: A sensação que se tinha era a de que a casa ou diminuía de tamanho, ajustando-se a você e a quem mais estivesse dentro gerando uma sensação de proteção e conforto ou todo mundo que entrava nela crescia em tamanho, fazendo com que os espaços vazios fossem preenchidos por nossa presença, mas sem a sensação de claustrofobia que um fato insólito como este poderia criar.
Pelo fato de ser toda de vidro (digo vidro por não ser capaz de definir aquele material com a palavra apropriada), de lá de dentro tinha a visão privilegiada de tudo o que acontecia no mar. A natureza transbordava sua beleza diante de meus olhos a cada momento, e vivia em perfeita paz e harmonia com a Criação.
Um dia, porém, estava lá sem fazer nada quando subitamente ouvi um vento muito forte. Olhei para o céu e o mesmo estava escurecendo rapidamente. Pessoas gritavam nas proximidades e corriam desesperadamente em direção contrária, como que fugindo de algo assustador. Senti um frio na espinha.
Por instinto, desviei meu olhar das pessoas em pânico e olhei para os lados das franjas do mar tentando descobrir de quem eles fugiam em desespero. Qual foi meu pavor ao ver que o mar encapelara-se como um gigante, despencando dos céus em grande fúria, numa velocidade espantosa. Minha casa de vidro seria engolida, bem como tudo que estava ao redor.
Aquela proteção natural das rochas se tornara insignificante perante ele, descendo com toda sua sede de destruição. Como a casa estava ajustada ao meu tamanho, tive tempo apenas de gritar “meu Deus!” e instintivamente me deitei, costas no chão e pés para cima, apoiando o telhado de vidro.
As águas despencaram sobre a casa. Na verdade tudo ao meu redor foi engolido pela fúria do gigante Ulmo*, que por alguma razão agia como que se estivesse buscando vingança contra algum inimigo que desconhecia até então. Senti o impacto das águas no vidro que se encontrava em meus pés. Flexionei as pernas e recebi forças suficientes para agüentar a tentativa de saque que a natureza estava tentando fazer.
Ao baixar as águas encontrava-me ainda ofegante e assustado. Demorou poucos segundos, mas foi como se o relógio tivesse parado e aqueles segundos tivessem sido eternizados.
Olhei ao redor e ainda pude ver o monstro retrocedendo, arrastando casas, árvores, vidas. Os gritos cessaram. Olhei ao céu e vi que o mesmo clareara novamente. Após muito receio, decidi abrir a porta e sair. Vi pessoas amadas ainda lutando desesperadamente, agarradas aos últimos fiapos de esperança. Resgatei uma, parecia alguém muito amado, mas não reconheci seu rosto.
Outros que tinham casas como a minha saíram também, e pude ver minha amada saindo e correndo até as pedras para ver melhor o retorno de Ulmo até seu reino. Corri até ela e a puxei de volta, repreendendo-a severamente. Num momento desses não devemos nos expor ao risco desnecessariamente, pois nada na verdade dizia que a fome do gigante estava plenamente saciada.
Sua sede por um juízo e acerto de contas com a humanidade poderia não ter sido concretizada. Em respeito ao inimigo ela me entendeu e passou a ser mais cautelosa desde então.
Sobrevivemos a este primeiro ataque, mas nada garantia que aquilo não votasse a acontecer. Nosso reino não era mais seguro como antes. O encanto parecia haver acabado. Mesmo com tudo belo ao nosso redor, sentíamos que éramos vigiados pelo monstro, que a qualquer momento de descuido poderia voltar. E ele voltou.
Desta vez porém, uma janela da casa estava aberta. Ele veio engolindo tudo e tive tempo apenas de fechá-la, tendo já muita água por todos os lados. Mesmo assim consegui interromper o processo. Não foi por minha força, nem muito menos merecimento. Na verdade merecia ter sido engolido desta vez por não estar vigilante.
A Graça me tocou. Arranhado moralmente pelo descuido mas salvo mera e exclusivamente pela infinita misericórdia do Senhor.
Tem sido assim...
Este é um sonho que freqüentemente tenho, ora eu estou blindado, ora pego de calças curtas, mas sempre conseguindo manter minha casinha de vidro em pé. Muitos outros somem, alguns morrem, mas os que estão dentro de suas casinhas de vidro conseguem permanecer vivos.
Este sonho frequente me alerta para muitas coisas. Tirem suas conclusões...
*A respeito de Ulmo, ele é utilizado em meu relato apenas por ser o senhor das águas na mitologia criada por Tolkien (autor de - entre outros - a trilogia de "O Senhor dos Anéis"). Ulmo na verdade é amigo dos Elfos, anões e homens. Faz justiça apenas contra os inimigos do bem, digamos assim. Abaixo um breve resumo, estraído do site Wikipédia, a enciclopédia livre:
Ulmo, nas obras de Tolkien, era o vala das águas, defendia a liberdade de elfos, único dos Valar que não se casou. Ajudou na construção de Gondolin e mandou notícias de sua queda. Raramente saía do mar, tinha três servos que o ajudavam com as ondas do mar: Ossë, Uinen, e Salmar.
Trecho de "O Silmarillion"
“Ulmo é o Senhor das Águas. Ele vive só. Não mora em lugar algum por muito tempo, mas se movimenta à vontade em todas as águas profundas da Terra ou debaixo dela. Seu poder só é inferior ao de Manwë; e, antes da criação de Valinor, era seu melhor amigo. [...] não gosta de caminhar sobre a terra e raramente se dispõe a se apresentar num corpo, como fazem seus pares. Quando os Filhos de Eru o avistavam, eram dominados por intenso pavor; pois a chegada do Rei dos Mares era terrível, como uma onda que se agiganta e avança sobre a terra, com elmo escuro e crista de espuma, e cota de malha cintilando do prateado a matizes do verde. As trompas de Manwë são estridentes, mas a voz de Ulmo é profunda, como as profundezas do oceano que só ele viu. [...] Ulmo ama elfos e homens e nunca os abandonou, [...] subindo por braços de mar para aí criar música com suas grandes trompas, as Ulumúri, que são feitas de concha branca pelo maia Salmar; e aqueles que a escutam, passam a ouvi-la para sempre em seu coração, e o anseio pelo mar nunca mais os abandona.”
quinta-feira, 8 de abril de 2010
A casinha de vidro
4 comentários:
Anônimo, eu não sei quem é você, mas o Senhor te conhece muito bem. Sendo assim, pense duas vezes antes de utilizar este espaço LIVRE (poderia bloquear comentários de anônimos mas não o faço por convicção pessoal e direção espiritual) antes de ofender quem quer que seja. Estou aberto para discutimos idéias sem agredir NINGUÉM ok? - Na dúvida, leia mil vezes Romanos 14, até ficar encharcado com a Verdade sobre este assunto...
Sonho arquetípico que vem como revelação para nossa metanoia diaria.
ResponderExcluirAgradeço por compartilhar.
Me obrigou a ir ao Google para decifrar sua mensagem, rsrs
ResponderExcluirBeijos e fica com Deus!
J.C.
ResponderExcluirSonho real e inquietante que nos leva a uma
reflexão intrigante cuja calma só é encontrada mesmo na Graça!
Excelente ensaio!
E valeu pela informação sobre "o Senhor das Águas" que mesmo sendo um "senhor" fictício abrilhanta o teor literário e acima de tudo nos enriquece pela clara analogia.
Em outras palavras: dá gosto de ler :)
bj
R.
Ixxiiii.... obrigado!
ResponderExcluirLembrei-me deste sonho devido ao mar estar numa ressaca brava aqui no Rio de Janeiro...
Como disse, tenho sonhado com esta situação há mais de dois anos.... aff!
Beijo querida!
JC